É a grande tragédia destes debates: as esquerdas colocam o
aborto e a questão gay na mesma escala de valores. O discurso do Progresso transforma-se
num bulldozer que arrasa quaisquer diferenças entre uma questão superficial
(gays) e a questão mais profunda de todas (aborto). Separadas por milhares de quilômetros
morais, os dois pontos são nivelados à força pelas palavras-bomba do costume, avanço
civilizacional, direitos, etc. Mais cedo ou mais tarde, as esquerdas discutirão
os direitos dos animais com a mesma carga de cavalaria, com a mesma falta de
sofisticação, com a mesma cegueira moral. Um cachorro é moralmente equivalente
a um bebé, não é? São ambos "seres sensitivos", não é verdade?
Colocar aborto e questão gay no mesmo saco é uma farsa. O
casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, implica a união voluntários
entre dois seres adultos, vacinados e com barba bem feita. Como é que isto pode
ficar na mesma dimensão do aborto? Não pode. É um assunto de uma galáxia muito
mais simples de resolver. Sim, mais simples. A temática gay (casamento, co-adoção
e até adoção) está à superfície, não coloca nem 10% dos dilemas morais do aborto.
Na questão do aborto, o mais profundo e inacabado dos debates, estamos a falar
de vida, da proteção de uma vida, de uma terceira parte que ainda não tem voz
mas que terá sempre essa voz se o deixarem nascer; a retórica do progresso e
dos direitos tem de parar ou desacelerar porque choca de frente com o direito à
vida deste ser. Os argumentos que abolem a presença desta vida são falsos
empiricamente e imorais do ponto de vista ético. Ou seja, até podem existir
caminhos respeitáveis para o sim, mas todos têm de passar pela noção de mal
menor e nunca pelo conceito de conquista.
Como já se percebeu, não vejo qualquer problema no
reconhecimento de direitos a casais homossexuais, mas vejo enormes problemas na
atual lei do aborto, que é uma vergonha. Aliás, ao contrário do que dá a
entender a retórica progressista, esta lei tem de ser discutida novamente. O
debate não está fechado. Nunca estará fechado. Ora, é por esta razão que fico
um pouco banzado quando vejo a direita a repetir a equivalência moral entre a
questão do aborto e a questão gay, como se ambas merecessem a mesma
resistência, como se ambas representassem o mesmo grau de importância na ordem
das coisas.
Henrique Raposo
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